quarta-feira, 3 de setembro de 2008

As bandeiras



As bandeiras, dado seu grande número e a diversidade de seus objetivos e resultados, foram objeto de várias classificações. A mais funcional as organiza em “ciclos”: da caça ao índio, do combate a tribos e quilombos e do ouro. O primeiro foi iniciado no século XVI, mas teve seu apogeu na primeira metade do século seguinte. Atacando em primeiro lugar as tribos próximas do planalto paulista, bandeirantes como Manuel e Sebastião Preto, Nicolau Barreto, André Fernandes, Antônio Raposo Tavares e muitos outros apresaram essas populações, tomando-as como escravos, vendidos inclusive no Rio de Janeiro. Com o despovoamento assim provocado, passaram a interessar-se pelos indígenas aldeados pelos jesuítas espanhóis em Guairá, no oeste paranaense, Tape e Uruguai, no noroeste do Rio Grande do Sul e Argentina atuais.

A utilização da mão-de-obra indígena no trabalho escravo veio a ser comum nas áreas de menor poder aquisitivo da Colônia, tanto no Estado do Brasil, como no Estado do Maranhão. A facilidade de apresamento do indígena e seu conseqüente baixo custo contrastavam com o alto preço do escravo africano, trazido de outro continente, com vários intermediários e uma bem-montada estrutura comercial. No Nordeste, somente durante o domínio holandês e a ocupação do litoral angolano pela Companhia das Índias foram introduzidos nos engenhos do Recôncavo índios escravizados, comprados aos bandeirantes. A alta de preços coincidiu, aliás, com os violentos ataques às missões do Tape e Uruguai, na década de 1630.

No século XVII, a independência e desenvoltura dos paulistas fizeram como principais vítimas os índios aldeados nas reduções jesuíticas. Já relativamente aculturados, com rudimentos de religião cristã e das técnicas agrícolas do homem branco, eram presa fácil e vantajosa – se comparados aos “índios bravos” do sertão – para os bandeirantes. O “ciclo da caça ao índio”, portanto, foi eminentemente despovoador, embora em geral viesse a beneficiar a posterior posse portuguesa destas regiões.

A contratação de bandeirantes para a redução de índios rebelados e quilombos correspondeu a outro tipo de atuação desses sertanistas. Conhecedores do interior e das línguas indígenas, eles próprios normalmente mamelucos, os paulistas ou vicentinos eram, no século XVII, os mais experientes homens do sertão. Foram contratados em diversas ocasiões. O governador-geral Francisco Barreto arregimentou-os logo após a expulsão dos holandeses, para combater indígenas de Ilhéus em conflito com os portugueses desde o século XVI. Mais tarde, em 1683, foram chamados Domingos Jorge Velho e Matias Cardoso de Almeida para combater os cariris do Rio Grande do Norte e Ceará, na chamada “Guerra dos Bárbaros”, que se deu até 1713. Para essa luta, longa e difícil, foi cobrada uma “finta” (imposto extraordinário), que permitiu o pagamento aos sertanistas. Pela mesma época, deu-se a contratação do mesmo Domingos Jorge Velho para o exemplo mais conhecido de bandeirismo de contrato: a destruição do quilombo dos Palmares.

O “ciclo” contratador não foi apenas a delegação, a particulares, da responsabilidade policial do Estado. Representou uma aliança entre administradores, bandeirantes e proprietários rurais daquelas regiões para a ocupação das terras. Em todas elas a primeira providência, após a vitória, foi a sua partilha, com a atribuição de sesmarias aos conquistadores.

A ação bandeirante de maior conseqüência foi o “ciclo” que resultou numa descoberta do ouro em Minas Gerais, ainda nos últimos anos do século XVII e, já no século seguinte, em Goiás, Mato Grosso e sul da Bahia. O território de Minas Gerais já fora atingido por entradas no século XVI. No século XVII várias bandeiras retornaram até lá, mas sem encontrar metais preciosos. Nas décadas de 1660 e 1670, as dificuldades econômicas de Portugal fizeram com que vários bandeirantes recebessem cartas do próprio rei, estimulando-os à busca dos metais. Um dos assim incentivados foi o antigo sertanista Fernão Dias Pais, que percorreu o atual território de Minas Gerais até o vale do Jequitinhonha, onde fundou arraiais de apoio, para abastecimento da bandeira, nos rios das Mortes, das Velhas, Paraopeba e Araçuaí. A expedição, que se estendeu de 1674 a 1681, não encontrou ouro nem esmeraldas, mas tornou o sertão mineiro muito mais bem conhecido, facilitando a tarefa de bandeirantes que, em 1695, encontraram os primeiros sinais de ouro.

Às vezes, as bandeiras têm sido excessivamente valorizadas na historiografia e na literatura do século XX como forma de justificar a importância ou mesmo a primazia de São Paulo na federação brasileira. Nem por isso, entretanto, devem ser minimizadas. Uma avaliação ponderada pode apontar, como suas principais conseqüências, o alargamento territorial do país, embora ao preço da escravização em larga escala dos indígenas e da destruição das missões jesuíticas espanholas; a descoberta de metais preciosos em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso; o melhor conhecimento orográfico e hidrográfico do interior do país; e a constituição de um núcleo de poder autóctone, em geral bem menos dependente das autoridades e dos comerciantes metropolitanos do que o representado pelos senhores de engenho.

(WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Colonial. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.114-118)

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