terça-feira, 30 de setembro de 2008

1968 - o ano das transformações (parte 02)

Caros alunos, aí está a segunda parte da reportagem da revista Época publicada em 26 de maio. Nos próximos dias, postarei outros textos referentes à datas significativas para o ano de 2008, como os 200 anos da vinda da família real portuguesa para o Brasil.


Os principais pesquisadores do período divergem s quanto ao impacto político de 68. Segundo o historiador Green, as manifestações contra a Guerra do Vietnã exerceram uma influência que não pode ser descartada. “Os protestos quebram o ciclo histórico de conformismo dos americanos”, diz. “Foi a primeira vez que a população se voltou contra a política externa do país.” Historiador e professor titular da Universidade de Paris – Sorbonne, o brasileiro Luiz Felipe de Alencastro acredita que todas as manifestações antiautoritárias de massa nos anos seguintes filiam-se aos movimentos de 68. Entre elas, os protestos de 1989 na Praça da Paz Celestial. “As correntes libertárias da década de 60 mudaram as sociedades contemporâneas”, afirma. Sem 68, teria havido na Inglaterra e na Espanha grandes manifestações de massa contra a invasão do Iraque? Alencastro acha que não. “Hoje há uma onda pacifista no mundo que saiu dos anos 60.”

Um período tão controverso não poderia deixar de provocar polêmica ainda hoje. O historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor do livro O Regime Militar no Brasil, defende a tese contrária à de Alencastro. Segundo ele, os mesmos ativistas que defendiam a liberdade de imprensa e criticavam os governos reacionários de direita muitas vezes não percebiam que os sistemas socialistas que tanto admiravam eram também opressores. “A verdade nua e crua é que a esquerda da época estava pouco preocupada com a questão democrática.” Fico afirma que, em especial no Brasil, o que muitos jovens desejavam era a instauração de uma ditadura proletária. Essa impressão é confirmada pelo próprio Fernando Gabeira, um rebelde que era da linha de frente da revolução. Na análise de Fico, também não se deve esquecer que muitas reivindicações de 68 estão marcadas pelo fracasso. “A luta armada no Brasil, o movimento pacifista nos Estados Unidos e o maio de 68 na França não passaram de chuva passageira”, diz. “No Brasil, a ditadura perdurou por longos anos, os Estados Unidos continuaram a ser uma nação com orientação bélica e na França os estudantes viram De Gaulle obter uma vitória estrondosa nas eleições.” Até a Primavera de Praga, um espasmo de independência nos países-satélites da União Soviética stalinista, foi sufocada pelos tanques russos.

Boa parte dessas reivindicações perdeu o sentido hoje. No campo político e econômico, o mundo é quase irreconhecível. A União Soviética, modelo inspirador para uma legião de revolucionários, esfacelou-se. A China comunista tornou-se uma potência econômica que impulsiona o capitalismo mundial. Em quatro décadas, surgiram 60 novos países e o planeta ficou US$ 30 trilhões mais rico. A globalização, com sua onda de oportunidades e temores, tornou-se um fenômeno irresistível. Nada disso teve raiz nos protestos de 68. Talvez por isso aqueles ideais tenham permanecido tão firmes em nosso imaginário, como um mundo que vislumbramos, mas não se realizou.

Se não tiveram força para revolucionar o cenário político do mundo, os ventos que sopraram em 68 deixaram marcas profundas no comportamento, na vida cultural e nos valores da sociedade. Segundo o escritor americano Paul Bermann, autor de O Poder e os Idealistas, um apanhado histórico sobre a geração de 68, duas principais heranças foram transmitidas às gerações futuras: a aversão visceral a toda forma de poder autoritário e a defesa dos direitos civis. É inegável que muitas das conquistas sociais da modernidade nasceram em 68 ou foram plantadas naquele ano. O movimento feminista foi uma das grandes forças do final da década de 60. As imagens mais marcantes são das ativistas que queimavam sutiãs em praça pública, em protesto contra a condição subalterna em relação aos homens. O sutiã sobreviveu. Mas as mulheres entraram maciçamente nas universidades, fincaram raízes irreversíveis no mercado de trabalho e conquistaram o direito de assumir sua sexualidade.

Leila Diniz: modelo para uma geração de mulheres que descobria a liberdade sexual.

No Brasil, não houve um movimento feminista organizado. Mas as mesmas barreiras começaram a ser quebradas. Prova disso foi o sucesso da atriz Leila Diniz e o fascínio que ela exerceu sobre uma sociedade conservadora, numa época em que as mulheres nem sequer iam sozinhas a bares e restaurantes e não eram bem-vistas se falassem palavrão. Linda, despojada e sedutora, Leila, ex-professora primária que saíra de casa aos 17 anos para viver com o cineasta Domingos de Oliveira, ganhou notoriedade em 1966, com o filme Todas as Mulheres do Mundo, em que aparecia nua. Nos anos seguintes, fez um filme atrás do outro, tornou-se a primeira porta-bandeira da Banda de Ipanema, defendia o amor livre e virou um mito no meio artístico, até sua morte, num acidente de avião na Índia aos 27 anos, em 1972. Leila era a face mais visível de uma revolução que ocorreu de maneira quase silenciosa – na época, a revolta contra o conservadorismo se confundia com a revolta contra a ditadura. “Nós não discutíamos essa coisa da liberdade comportamental”, diz a atriz Marília Pêra, que chegou a ser presa duas vezes em 68 por sua luta contra o cerceamento artístico. “Nossa única preocupação era impedir que a ditadura nos castrasse. Acho que naquela época eu não ouvi uma única vez a palavra feminismo.” Zuenir Ventura chama de sintonia mágica o fato de as mulheres daqui terem se comportado tal qual suas colegas americanas, embora inconscientemente. “Eu amava muito, freqüentava festas loucas, fazia o que bem entendia. Se isso era uma revolução, eu não sabia dizer”, afirma Marília Pêra.

Martin Luther King lutou pelos direitos civis dos negros norte-americanos

O ano de 1968 também foi um marco na luta dos negros pela conquista dos direitos civis, especialmente nos Estados Unidos. Na luta contra a segregação racial que existia no país, o pastor Martin Luther King, um líder que pregava a resistência pacífica, foi assassinado. Naquele período, crescia a influência do movimento Panteras Negras, um grupo revolucionário marxista que buscava conquistar espaço pelo confronto. Os Panteras tornaram-se mundialmente conhecidos nos Jogos Olímpicos do México, quando dois corredores americanos subiram ao pódio usando luvas pretas para receber suas medalhas. Durante a cerimônia, eles ergueram os punhos cerrados, gesto característico do movimento. Mas foi a veia pacífica de King que sensibilizou os americanos. Pouco após sua morte, a Suprema Corte declarou que todas as formas de segregação eram contrárias à Constituição. “Hoje, até George Bush venera King”, diz o historiador Alencastro. Foi a geração de 68 que permitiu a ascensão de negros a posições de destaque nos Estados Unidos. “Se há empresários negros bem-sucedidos, apresentadores de televisão de sucesso ou esportistas idolatrados, é porque as pessoas iam às ruas gritar contra a discriminação”, diz o historiador Green.

EXPERIÊNCIAS
Foi uma época marcada pela busca de novos caminhos. A visita dos Beatles ao guru indiano Maharishi Mahesh Yogi fez o Ocidente descobrir a espiritualidade oriental. No Brasil, a ousadia da peça Roda Viva irritou a ditadura

No Brasil, grandes transformações na área cultural vieram no embalo da contracultura. A principal delas foi o tropicalismo, que ainda hoje reverbera especialmente na música popular brasileira. O movimento, liderado por Caetano Veloso, Nara Leão e Gilberto Gil, entre outros artistas, propunha mudanças tão radicais que se revelaram inspiradoras para todas as gerações seguintes. O tropicalismo de Caetano incorporou o uso da guitarra elétrica e de gêneros como o bolero e as músicas de raiz. De tão ousada, a mistura provocou reações iradas dos setores mais conservadores, que consideram aquilo uma agressão. O tropicalismo só foi possível porque vivia-se uma época em que se experimentava de tudo. Era o ano em que o principal grupo de rock do mundo, os Beatles, ia à Índia conhecer o guru Maharishi Mahesh Yogi. Aquela viagem, que então parecia maluquice, apressou o contato do mundo ocidental com as técnicas da meditação, diz a escritora Sharon Begley num artigo publicado na revista Newsweek.

Atores da peça Roda Viva

O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, que encenou a peça marginal Roda Viva, um dos marcos da contracultura do período, diz que 68 foi fundamental para uma mudança não só de comportamento, mas da própria visão de mundo. “Aquela geração tirou a máscara da hipocrisia”, diz. “As pessoas se deram conta de que precisavam viver o aqui e o agora, que não dava para esperar os outros fazerem algo por você.” Uma das trilhas sonoras possíveis para o período, “Para não Dizer Que não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, traz um verso, um tanto gasto hoje em dia, que traduz esse espírito: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Fazer a hora era um termo cujo significado ia desde ingressar na luta armada contra o governo militar até o uso de drogas, praticar o sexo livre ou vestir-se com calças boca-de-sino. Hoje esse discurso soa algo irreal. Desde então, o regime militar foi sepultado e uma era individualista torna difícil acreditar nas soluções coletivas. O escapismo das drogas revelou-se um vício associado à violência, muito mais que à “abertura da mente”. A aids fez refluir o comportamento sexual sem limites – junto com a percepção de que, embora prazeroso, ele não tornava as pessoas felizes.

E, no entanto, poucas das grandes mudanças por que passamos nessas quatro décadas não surgiram naquela época. Da tolerância à diversidade ao reconhecimento dos direitos das mulheres e minorias, do movimento ambientalista às organizações comunitárias, da valorização dos prazeres à busca da espiritualidade pela meditação, a geração de 68 atingiu, sim, seu ideal de transformar o mundo.

Calendário dos fatos de 1968. Para ampliar, clique na imagem.

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