sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Dessas histórias do passado.


Quando criei essa coluna - Contos, fábulas e lendas - minha idéia era de retomar, especialmente, histórias e tradições que eram comuns à minha infância, onde os mais jovens viajavam em relatos fantásticos, narrados com maestria pelos adultos mais experientes. Pais e avós, sentados nas calçadas, mal iluminadas, circundados por filhos, netos, sobrinhos e demais crianças da vizinhança, iniciavam contos de casa mal-assombradas, nas quais escravos e escravas eram torturados em troncos até a morte!


Lembro-me do meu pai, maior referência de decência de minha vida, com sua voz firme e pausada, repleta de inflexões, com mãos cortando o vento em gestos lentos, verdadeiro maestro da minha curiosidade, olhar distante, descrevendo, em detalhes, varandas de casarões antigos nos quais meus bisavós moraram, habitados por fantasmas de ex-moradores de épocas de engenhos de açúcar. Eu, agarrado às mãos de meus irmãos, maravilhado e apavorado, parecia mergulhado nas discrições, encantado com o relato.


Seguia, meu pai, com seu conto: as portas arqueadas de umburana, que davam para o roçado, batiam violentamente sem que ninguém as abrissem; eram os espíritos, dizia ele. Arrastado de correntes, estalar de chicotes, potes de barro sendo enchidos com água na cozinha, choros de crianças em forma de soluço baixinho. De repente, o silêncio. O mais absoluto silêncio.


Assim a noite se arrastava como alma penada. Longa noite que não encontrava o dia. Daí a pouco, tudo outra vez. Agora o barulho era mais alto. Os animais se agitavam lá fora no terreiro. Pela fresta da janela lateral, minha tataravó, por nome Maria de Sebastião ferreiro, tentava ver alguma coisa. Terço em uma das mãos, água benta na outra, rezava com fervor, talvez pela ida da assombração, talvez pela chegada do dia.


- “Isso só acontuce nas sexta-feira sem lua, Maria!” Dizia meu tataravô.


- “É, Bastião, indagurinha, tava se alembrando dirso!... Mais, Jesus fi de Maria santirssima e padim Ciço são maior!


Dia seguinte, continuava meu pai, tudo estava na mais perfeita ordem.


Eu, mais tarde, ia dormir, coberto com meu lençol branco, feito de saco de açúcar, imaginando se aquele saco teria sido carregado nas costas dos escravos daquela fazenda, morrendo de medo de alguma alma do outro mundo vir balançar o punho da minha rede.


Dessas histórias do meu pai, saíram meu gosto pela História e a compreensão do meu passado mais remoto. Aprendi com essas conversas de calçadas, em época que haviam calçadas e conversas, que meu bisavô Sebastião era ferreiro e minha bisavó era dona de casa. Viveram no interior, praticando a agricultura de subsistência, criando pequenos animais no quintal de um casarão numa fazenda de açúcar que tinha escravos. Aprendi que eram analfabetos, católicos e devotos de Padre Cícero. Aprendi a ouvir os mais velhos e respeitar a tradição; aprendi a deduzir, a tirar conclusões, a juntar informação e a armazenar dados, correlacionando-os. Aprendi a amar meus irmãos na partilha e não por co-habitar com eles; aprendi a lidar com meus medos. Tive infância, tive passado. Era pobre; muito pobre! Não havia Internet, nem orkut, tampouco, msn. Mas, eu era tão feliz!
Adailton Figueiredo.

5 comentários:

Sanidades Insanas disse...

Simplesmente lindoo!
Lembrei-me do meu pai...pois,por mais que eu seja jovem e de uma realidade de infância diferente da sua Dadá, tive a oportunidade de viver um pouco disso...meu pai adorava inventar e contar estórias e histórias quando eu era pequena ,e fazia isso de forma inesquecível! Talvez isso tenha se dado pelo fato dele ser um senhor e ter vivido isto em sua época, fazendo da mesma forma com seus filhos!
Tive ainda a chance de viver em lugar onde os vizinhos se conhecem e jogam conversa fora nas calçadas enquanto seus filhos brincam na rua de "esconde-esconde"; ou pelos o faziam, pois hoje já não vejo muito disto por aqui, infelizmente. Hoje estamos mais preocupados com os assaltos e com os trabalhos do que com o nosso momento familiar!

;)
bjos!

Anônimo disse...

Eu tenho 17 anos mas ainda peguei a época das calçadas e conversas.
Acho que o prazer da companhia dos vizinhos era bem maior que o da conversa em si, pois os assuntos eram sempre os mesmos...
As ruas realmente perderem sua graça depois dos assaltantes noturnos.
Daqui a pouco até as conversas nos ônibus com pessoas desconhecidas/legais vão desaparecer com a mania do mp4! Ouve em casa, poxa.

História muito bonita a sua, prof. E muito interessante a que te contavam.

Unknown disse...

Grande Colega e Professor Adailton, Linda historia, bacana mesmo.
Sou do interior tbm onde por toda a minha infancia tambem ouvi varias vezes meus pais e vizinhos nos contarem essas historias e mitos!
Parabens Cara!

Abraco!

Anônimo disse...

Adorei ter lido essa linda história,para mim que morei a vida inteira presa dentro de casa( super proteçao dos pais, com medo de assaltantes e tudo mais), e morei 13 anos em um mesmo local sem nem conhecer meus vizinhos, essas historias contadas por meus avós e pais sempre pareceram contos de fadas....muito longe da minha realidade de criança e jovem...como seria bom que pudessemos ainda resgatar um pouco desse passado no meio da rua, e tentarmos ser mais felizes com pequenas coisa.

Gervásio Hermínio disse...

Belo texto Adailton, mas queria dizer mesmo que achei muito boa sua aula de quinta feira à noite. Só faltou a primeira guerra pra você fechar o breve século xx...