terça-feira, 19 de agosto de 2008

Perfil Histórico (parte 01)

Moisés

Moisés é o maior personagem da his­tória e da religião judaicas. Mas é também onipresente na iconografia cris­tã, pois o cristianismo se situa no prolon­gamento do judaísmo. De fato, a pala­vra mestra das duas religiões é "aliança": aliança de Deus com o povo eleito (ju­daísmo), aliança com a humanidade inteira (cristianismo). Ora, Moisés, libertador e legislador de Israel, foi quem proclamou solenemente, no alto do Sinai, a aliança de Yahweh com seu povo.

Conhecemos a história de Moisés, e a conhecemos apenas por quatro dos cin­co primeiros livros da Bíblia. O grupo desses cinco livros chama-se Pentateuco. São estes, segundo a Bíblia, os fatos no­táveis da existência extraordinária de Moisés: ele nasce numa família de he­breus que imigraram para o Egito. Aos olhos do faraó, parece que estes se multi­plicam, então, de forma preocupante, e ele ordena que sejam mortos todos os meninos pequenos dos hebreus. Os pais de Moisés abandonam o recém-nascido em um cesto, no meio dos caniços do Nilo. A filha do faraó descobre-o e cria-o na corte. Mas, apesar de educado entre os egípcios, Moisés continua em contato com os membros de sua verdadeira fa­mília e se aflige ao ver as corvéias cada vez mais duras a que são submetidos os hebreus do Egito. Um dia, ele mata um vigilante egípcio que estava batendo num deles; depois, foge até a beira-mar, em frente à Península do Sinai, lugar dos pastores da região de Madiã. Casa-se com a filha do chefe destes, o sacerdote Jetro.

Sua vida muda ainda uma vez quan­do Yahweh se revela a ele na sarça ar­dente e lhe dá a missão de obter do faraó a permissão para que os hebreus do Egito voltem ao país de seus ancestrais, a terra de Canaã. Moisés obedece e procura o soberano, que recusa. Daí, uma prova de força e o envio de dez calamidades sucessivas sobre o Egito: a água do Nilo transformada em sangue, a invasão das rãs e, depois, dos mosquitos, a peste bo­vina, uma epidemia de furúnculos e abscessos, granizos, nuvens de gafanhotos, um vento carregado de poeira, trevas em pleno dia e, por fim, a morte dos primogênitos dos egípcios e do gado. Deixando de resistir, o faraó permite que os hebreus partam. Essa partida será de­pois comemorada pelos judeus, todos os anos, sob o nome de Páscoa, que significa "passagem". O faraó logo se arrepende da decisão e manda seu exército perseguir os emigrantes. Mas os hebreus atravessam milagrosamente o mar Vermelho a pé enxuto, porque um forte vento retivera as águas antes que passassem. Seus perse­guidores, e principalmente as carruagens e os cavalos, afundam no solo mole. A água volta e todos se afogam.

Como para voltar a Canaã era preciso evitar a estrada do Norte, por onde pas­savam as caravanas, controlada pelos egíp­cios, Moisés conduziu os hebreus por um desvio: o itinerário do Sul e, portanto, pelo deserto do Sinai. Essa caminhada extenuante no deserto teria durado qua­renta anos - ou seja: o tempo para que morresse a geração que sentiu deixar a abundância do Egito e que crescesse outra que fora formada na rude escola do deserto. Porque os hebreus lamenta­ram várias vezes perder o vale fértil do Nilo, e Moisés teve dificuldade para con­duzir aquele povo de “dura cerviz”, como o chamava Yahweh. Eles eram ameaça­dos pelas tribos inimigas e por animais selvagens – serpentes e escorpiões. O alimento era raro. Foi para salvá-las da fome que Deus lhes enviou o “maná”, descrito como uma farinha granulosa de­positada no solo todas as manhãs, como se fosse geada. O auge dessa caminhada, protegida pela nuvem de Deus, será a celebração da aliança entre Deus e Isra­el: sobre uma montanha, no maciço do Sinai, Yahweh fez então uma promessa a seu povo, e este jurou fidelidade a seu Deus. Depois, Moisés proclamou os dez mandamentos ensinados pelo Altíssimo.

Desde então, as Tábuas do Decálogo foram conservadas numa arca – a arca da aliança – que se deslocava com o povo. Apesar da aliança do Sinai, os israelitas, a caminho da Terra Prometi­da, recaíram por vezes no politeísmo que seguramente praticaram no Egito. Ado­raram até um bezerro de ouro: daí a cólera de Moisés, que quebrou as Tábuas da Lei (que foi necessário refazer) e fez matar, a espada, três mil culpados. As­sim mesmo, conseguiu abrandar a cóle­ra de Yahweh. Os judeus, após sua lon­ga caminhada, chegaram à margem ori­ental do Jordão. E foi no cimo do mon­te Nebo, situado a leste desse rio e de Jericó, que Moisés morreu diante da Terra Prometida.

Os cinco livros do Pentateuco, que os judeus chamam Torah, foram redigi­dos a partir do século X a.C. São, pois, claramente posteriores a Moisés, ele pró­prio contemporâneo de Ramsés II (1290­1224 a.C.). Os relatos concernentes a ele e os relativos à “Procissão” de Israel rumo à Terra Prometida certamente fo­ram ampliados e enfeitados. A história da criança num berço, no Nilo, lembra o que se contava de Sargão, conquista­dor mesopotâmico, no século XXV a.C. O episódio da travessia do mar Verme­lho deve, sem dúvida, ser reduzido a um forte movimento das águas nos la­gos situados ao norte dele, mas já sujei­tos à maré. As pragas do Egito certa­mente foram aumentadas. Por fim, os hebreus que fugiam do país do faraó deviam ser apenas alguns milhares.

Mas Moisés é realmente um nome egípcio: o que é uma espécie de auten­ticação. É certo, por outro lado, que Ramsés fortificou a parte oriental do delta do Nilo, para protegê-la contra invasores vindos da Ásia Menor. Daí o emprego de uma mão-de-obra forçada: a dos hebreus estabelecidos há algumas centenas de anos na parte nordeste do país. Enfim, de modo geral, hoje os especialistas ten­dem a não menosprezar a história oral que precede a história escrita. Foi possí­vel verificar, em vários casos, que ela não é constituída apenas de um encadeamen­to de lendas.

Com certeza aquele que a Bíblia cha­ma Moisés foi o criador da identidade judaica, o legislador desse povo que de fato constituiu, o primeiro de seus pro­fetas e o fundador em escala mundial da primeira religião monoteísta. No Decá­logo, seis mandamentos pertencem à moral universal (“Não matarás... Não tomarás o bem do teu próximo” etc.). Mas os quatro primeiros eram totalmen­te novos: “Não terás outros deuses além de mim... Não farás ídolos... Não pro­nunciarás em vão o nome de teu Deus... Farás do shabbat um memorial sagrado”. A força e a novidade desses mandamen­tos explicam por que Moisés se tomou um gigante da história religiosa. Privilégio ex­traordinário: "Yahweh", diz a Bíblia, "falava a Moisés face a face, como a um amigo".

(DELUMEAU, Jean. De religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000. p.33-40)

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