terça-feira, 15 de julho de 2008

Da falácia da igualdade de todos perante a lei (ou o caso Daniel Dantas).


As sociedades humanas, desde o advento da propriedade privada, criaram em seu seio uma profunda desigualdade facilmente perceptível. Tal desnível político-jurídico, gerado pelas diferenças econômicas entre os agentes sociais, jamais foi disfarçado na antiguidade oriental ou ocidental. No Egito ou na Mesopotâmia, na antiga Grécia ou na Roma dos césares e augustos, o poder político estava concentrado nas mãos de uma minoria social que assumia para si as prerrogativas do poder e as benesses que somente os palacianos agraciados dos deuses usufruíam.

A idéia corrente de um poder legitimado pelos deuses era incutida em corações amedrontados e mentes intelectualmente modestas. Sacerdotes profissionais, serviçais do poder e beneficiários do Estado difundiam a ideologia que mantinha a distância entre os servidos e os servidores. No Egito, por exemplo, o faraó era um deus vivo; na Mesopotâmia, o patesi era a representação do divino; entre os hebreus, o juiz se auto-intitulava escolhido por Javé. Não obstante, na magnífica e imponente Roma o imperador era uma divindade merecedora de respeito e obediência desmedida e inquestionável por parte de uma população miserável e iletrada.

A legislação aristocrática e autoritária servia de pano de fundo para o circo de horrores políticos: definia cidadão, via de regra, como aqueles grandes proprietários de terras, de objetos e de gente coisificada. O humano desprovido de riqueza ou o cavalo servindo de montaria a um nobre não se diferenciavam! O escravo era a pura expressão do anti-cidadão na civilização que apregoava a cidadania. A inclusão era para alguns e nela não cabia o dejeto social. A lei que deveria ser seguida era aquela que fora elaborada em benefício de poucos e, talvez, por isso mesmo, não poderia ser questionada, afinal, dura lex, sede lex. A legislação era a mantenedora da ordem. Todavia, cabem aqui algumas perguntas: que ordem? A ordem da anticidadania? Da miséria? Da submissão? Sim, provavelmente não haveremos de encontrar entre artigos e alíneas complexas, tortuosas, labirínticas, com seus alçapões e arpões para peixes de segunda categoria a busca pela manutenção de outra ordem.

Levando em conta a possibilidade do descumprimento da lei, a elite dominante, precavida e com percepção de longo alcance, cria seu braço armado: o exército ou equivalente, comandado pela casta abastarda e composta por miseráveis para reprimir miseráveis em nome da segurança nacional. Fica evidente a compreensão do perigo que seria uma massa faminta, revoltada e desobediente, não temente a Deus e a alguns homens. Ao lado dos exércitos, bem treinados e armados, onde jovens que nunca manusearam canetas eram hábeis com fuzis, erguem-se os templos das torturas e monumentos da repressão: as cadeias.

Cada vez mais sofisticadas na arte da reclusão, as prisões passam a ser símbolos do poder tanto quanto os palácios na medida em que abrigam os inimigos do rei, ao passo que, nos salões palatinos, guardavam-se os amigos do rei. Uma vez encarcerado, o individuo não seria mais influência maléfica à sociedade. Perguntar-se-ia: qual sociedade?

O tempo passou, a história foi sendo construída com seus avanços e retrocessos. Todavia, três coisas não mudaram, ainda: manda quem pode, obedece quem tem juízo e cadeia não é pra todo mundo.
Adailton Figueiredo.

11 comentários:

Elaine disse...

texto perfeeeiitoooo!!
qria escrever como vc...
simplesmente genial ;D

Anônimo disse...

Elaine,
Obrigado pelo comentário gentil. Continue visitando nosso blog.

Anônimo disse...

Professor,
você não é humano, você é uma potência licenciada com certificado em história. Obrigado pela sublime leitura que acabo de fazer.

Anônimo disse...

Adailton,

Parabéns pelo artigo, ficou realmente muito bom. Vou sugerir ao meu pai que publique-o no Cajarana, na próxima edição. Você nos permite?

A foto postada junto ao texto também é muito boa, e chocante. Vejo que gostas de fotos e imagens chocantes. Novamente, não precisa de legenda!

O caso de Daniel Dantas é realmente absurdo. Não entendo como se concebe no Brasil que se possa requerir Habeas Corpus Preventivo. Preventivo! Quer dizer, o criminoso tanto sabe que infrigiu à Lei que já tenta se livrar antecipadamente.

Estamos na expectativa pela aula sobre a Ditadura Militar e a peça!
Até mais!

P.S.: Engraçado você ter cedido à moda da UFRN em "gente coisificada"! Rsrs...

P.S.2.: Agenor não vai escrever no blog? Aposto que seria ótimo!

Anônimo disse...

Professor, depois de 16 anos sem ter a oportunidade de ler algum texto (ou poesia), sou agradavelmente surpeendida por este blog.
Ah, se eu tempo voltasse...

Anônimo disse...

É muito bom saber que temos pessoas que estão na sociedade, e que não são sujeitos que acreditam em qualquer discurso, esses questionam e refletem possibilitando um verdadeiro contraponto entre a História e a sociedade atual, num país chamado "Brasil".

Acrescento as brilhantes palavras desta:

“Quanto mais negra é a noite, mais brilham as estrelas”.

Rosa Luxemburgo

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

É muito bom saber que temos pessoas que estão na sociedade, e que não são sujeitos que acreditam em qualquer discurso, esses questionam e refletem possibilitando um verdadeiro contraponto entre a História e a sociedade atual, num país chamado "Brasil".

Acrescento as brilhantes palavras desta:

“Quanto mais negra é a noite, mais brilham as estrelas”.

Rosa Luxemburgo

Anônimo disse...

Valeu Adailton!

Ótimo artigo. Gostei muito de sua abordagem em relação a dominação do povo pelos poderosos, que mesmo sendo uma realidade, mas que muitas vezes não conseguimos perceber.

Adorei!

Unknown disse...

Ensina-me a escrever assim?
=D
Adorei o texto. E a expressão em latim, com certeza, foi muito interessante.

Abraço,
RT.

Unknown disse...

Ensina-me a escrever assim?
=D
Adorei o texto e a expressão em latim, com certeza, foi muito pertinente.

Abraço,
RT.