Por Ignácio Ramonet
LE MONDE Diplomatique
Um cartaz enfeitou, em janeiro de 1998, as paredes de vários aeroportos europeus: numa paródia às imagens da Revolução Cultural chinesa, mostrava uma fila de pessoas, avançando à frente de uma manifestação, rostos radiosos, empunhando estandartes coloridos, agitados pelo vento, e gritando: “Capitalistas de todos os países, uni-vos!” Para a Forbes, revista dos bilionários norte-americanos, essa foi uma maneira debochada de comemorar 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels.
Foi também uma maneira de afirmar, sem medo de ser desmentidos (os cartazes não estavam rasgados nem pichado), duas coisas: o comunismo já não mete medo; e o capitalismo passou à ofensiva.
A NOVA ARROGÂNCIA DO CAPITAL
Num ano em que se comemoravam não apenas o aniversário desse célebre Manifesto, escrito por dois jovens (Marx tinha trinta anos e Engels, 28!), mas também o da revolução de 1848 (que impôs o sufrágio universal masculino e a abolição da escravatura) e o da revolta de maio de 1968, que reflexões poderia inspirar essa nova arrogância do capital?
Ela começou com a queda do muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética, num contexto de estupor político em que se manifestava o desejo de uma ilusão perdida. As súbitas revelações de todas as conseqüências, no Leste europeu, de décadas de estatização perturbaram os espíritos. Um sistema sem liberdade e sem economia de mercado surgiu em seu absurdo trágico, com seu corolário de injustiças. O pensamento socialista de certa forma sucumbiu, assim como o paradigma do progresso enquanto ideologia que pretende um planejamento absoluto do futuro.
A UTOPIA DO PENSAMENTO ÚNICO
À esquerda, aparecem quatro novas convicções que poderiam solapar a esperança de transformar radicalmente a sociedade: nenhum país pode se desenvolver seriamente sem uma economia de mercado; e estatização sistemática dos meios de produção e de comércio acarreta desperdício e penúria; a austeridade a serviço da igualdade não constitui, em si própria, um programa de governo; a liberdade de pensamento e expressão pressupõe, como condição necessária, uma certa liberdade econômica.
O fracasso do comunismo e a implosão do socialismo também arrastaram, por tabela, o desmantelamento ideológico da direita tradicional (que tinha por único suporte doutrinário o anticomunismo) e consagraram como único vencedor do conforto leste-oeste neoliberalismo. Com sua dinâmica freada desde o inicio do século, este vê desaparecerem seus principais adversários e passa a se exibir, em escala planetária, com energia decuplicada. Sonha impor sua concepção do mundo, a sua própria utopia, enquanto pensamento único, a toda a Terra.
A NEGAÇÃO DO ESTADO E DA CIDADANIA
Essa tarefa de conquista se chama globalização, e resulta da interdependência, cada vez maior, das economias de todos os países, através da liberdade absoluta de circulação dos capitais, da supressão das barreiras alfandegárias e de regulamentações, e pela intensificação do comércio e do livre mercado, incentivados pelo Banco Mundial (Bird), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Estabelece-se uma desconexão entre a economia financeira e a economia real. Enquanto as transações financeiras diárias representam 1,5 trilhão de dólares em escala mundial, apenas 1 por cento desse montante é dirigido à criação de novas riquezas. O resto é de natureza especulativa.
Esse impulso do neoliberalismo se faz acompanhar, mesmo nos países mais desenvolvidos, por uma significativa redução dos atores públicos, a começar pelos parlamentos, assim como por uma devastação do meio ambiente, por uma explosão de desigualdades e pelo retorno maciço à pobreza e ao desemprego. O que representa a negação do Estado moderno e cidadania.
COLOCANDO O PLANETA EM REDE
Também assistimos a uma desconexão radical entre, por um lado, a evolução das novas tecnologias e, por outro, a noção de progresso da sociedade. O avanço da biologia molecular, que data do inicio da década de 60, associado à potencia de matemática que agora permite a informática, mandou para o espaço a estabilidade geral do sistema técnico. Seu controle pelo poder público é cada vez mais difícil. Resultado: os dirigentes políticos se confessam incapazes de medir a ameaça que significa uma tal aceleração das tecnociências. Também aí eles passam à dependência de especialistas que dirigem, por caminhos obscuros, as decisões governamentais.
A revolução da informática explodiu a sociedade contemporânea, transtornou a circulação de mercadorias e proporcionou a expansão da economia eletrônica e a globalização. Esta ainda não abalou todos os países do mundo a ponto de os transformar numa única sociedade, mas tenta convertê-los num modelo único econômico, colocando planeta em rede. Cria um tipo de vinculo social-liberal totalmente constituído por redes, separando a humanidade em indivíduos isolados um do outro num universo hipertecnológico.
O MUNDO PARECE OPACO
Conseqüências: as desigualdades se aprofundam. Existem mais de 60 milhões de pobres nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo. Mais de 50 milhões de pobres na União Européia, principal potência comercial. Nos Estados Unidos, 1 por cento da população detém 39 por cento da riqueza do país. E, em escala planetária, a fortuna dos 358 indivíduos mais ricos, bilionários em dólar, é superior à renda anual dos 45 por centos dos mais pobres, ou seja, 2,6 bilhões de pessoas...
A lógica da competitividade foi elevada ao nível do imperativo natural da sociedade. Ela faz perder o sentido de “viver juntos”, do “bem comum”. Enquanto isso, a distribuição dos lucros da produtividade se faz em benefício do capital e em detrimento do trabalho, o custo da solidariedade é considerado insuportável e o edifício do Estado de bem-estar é implodido.
Diante da brutalidade e da rapidez de todas essas mudanças, perdem-se as referências, acumulam-se as incertezas, o mundo parece opaco, a história parece fugir de qualquer tipo de análise. Em meio à crise, os cidadãos procuram um sentido para o que Antonio Gramsci definia: “Quando morre o velho e o novo hesita em nascer”. Ou, como diria Aléxis de Tocqueville, quando “o passado deixa de iluminar o futuro e o espírito caminha nas trevas”.
O DESCRÉDITO DAS ELITES E INTELECTUAIS
Para inúmeras pessoas, a idéia ultraliberal de que o Ocidente está suficientemente amadurecido para viver em condições de liberdade absoluta também é tão utópica – assim como dogmática – como a ambição revolucionária da igualdade absoluta. Perguntam-se como é possível pensar o futuro. E expressam a necessidade de uma outra utopia, de uma nova racionalização do mundo. Esperam por um tipo de profecia política, uma reflexão sobre um projeto para o futuro, a promessa de uma sociedade reconciliada, em plena harmonia com si própria.
E haveria hoje um espaço, entre as ruínas da União Soviética e os destroços de nossas sociedades desestruturadas pela barbárie neoliberal, para uma nova utopia? A priori, isso parece pouco viável, pois se generalizou a desconfiança para com os grandes projetos políticos e porque, ao mesmo tempo, se assiste a uma grave crise de representação política, a um enorme descrédito das elites tecnocráticas e da intelectualidade mais famosa, assim como a uma profunda ruptura entre os grandes meios de comunicação e o seu público.
UM CONTRAPROJETO GLOBAL
Em qualquer tipo de eleição, aumenta o índice de abstenções, assim como o voto em branco e nulo. Na França, um em cada três jovens de menos de 25 anos não tem titulo eleitoral; o numero de filiados a partidos políticos não passa de 2 por cento dos eleitores e apenas 8 por cento dos assalariados se filiam a um sindicato. À esquerda, o Partido Socialista praticamente não tem mais quadros egressos das camadas populares; o Partido Comunista, além de perder sua identidade ideológica, praticamente perdeu a identidade sociológica.
E, no entanto, muitos cidadãos gostariam de colocar um grão de humanidade na engrenagem bárbara neoliberal; procuram um antecedente responsável, experimenta o desejo da ação coletiva. Gostariam de questionar dirigentes bem definidos, em carne e osso, a quem pudesse repassar suas críticas, suas preocupações, suas angustias e sua confusão, na medida em que o poder se tornou em grande parte abstrato, invisível, distante e impessoal. Ainda gostariam de acreditar que existem respostas na política, justamente quando a política tem cada vez maior dificuldade em dar respostas simples e claras aos problemas complexos da sociedade. E, no entanto, cada cidadão sente a necessidade urgente – como uma barreira contra a ressaca neoliberal – de um contraprojeto global, uma contra-ideologia, um edifício conceitual que se possa contrapor ao modelo atualmente dominante.
A IDEOLOGIA ANARCO-LIBERAL
Construir esse projeto não é fácil, pois o ponto de partida é quase tabula rasa que as utopias antecedentes, baseadas na idéia do progresso, sucumbiram quase sempre no autoritarismo, na opressão e na manipulação dos espíritos.
Uma vez mais se sente a necessidade de sonhadores que pensem e de pensadores que sonhem, para sair em busca de um projeto de sociedade – não um projeto amarrado e empacotado – que permite opinar, analisar e frear, através de uma nova ideologia, a ideologia anarco-liberal. Esta fabrica uma sociedade egoísta, priorizando a fragmentação, a divisão.
REINTRODUZIR A NOÇÃO DO COLETIVO
Torna-se indispensável, portanto, reintroduzir a noção do coletivo, pensando no futuro. E, hoje, essa ação coletiva passa por associações, como pelos partidos e sindicatos. Durante os últimos anos, aliás, assistiu-se, na França, a uma multiplicação dessas entidades, desde grupos de moradores numa luta especifica de seu bairro às associações contra o desemprego, passando pelas sucursais locais de ONGs internacionais, como Greenpeace, anistia Internacional, Médicos do Mundo ou Transparência.
Entre outras, os partidos têm duas características desabonadores: são genéricos (pretendem resolver todos os problemas da sociedade) e locais (seu perímetro de intervenção termina na fronteira do país). Já as associações têm, por seu lado, dois atributos simétricos e inversos aos dos partidos: são temáticas (voltadas para um único problema da sociedade: desemprego, habitação, meio ambiente etc.) e além fronteiras (sua área de intervenção se estende por todo o planeta).
UM VÍNCULO FUNDAMENTAL
Na década de 80, esses dois tipos de militância (global e de urgência, com um objetivo preciso) às vezes se estranharam. Porém, parece anunciar-se um movimento de convergência. Sua junção é indispensável. Constitui uma das equações a ser superadas para restaurar a política. Pois, se é o fato que as associações nascem de baixo, como testemunhas da riqueza da sociedade civil, e preenchem as deficiências do sindicalismo e dos partidos, também não passam, à vezes, de meros grupos de pressão, assim como lhes falta a legitimidade democrática da eleição para alcançar suas reivindicações. Numa hora ou em outra, será a vez do político. Por isso é fundamental que exista o vinculo entre associações e partidos.
Baseando-se numa concepção radical de democracia, essas associações continuam achando que é possível transformar o mundo.elas constituem, sem qualquer sombra de dúvida, o embrião da ação política na Europa. Muito provavelmente, como diziam Victor Hugo (“A utopia é a verdade de amanhã”) e Lamartine (“As utopias não passam de verdades prematuras”), seus militantes reaparecerão amanhã ou depois, em outros lugares, com outras palavras de ordem, engajados em outras lutas.
POR UMA ÉTICA DO FUTURO
Para reinstituir as nações Unidas no lugar que lhes cabe o direito internacional, uma ONU capaz de decidir, de agir e de impor um projeto de paz perpétuo; para adaptar os tribunais internacionais que julgarão crimes contra a humanidade, contra a democracia e contra o bem comum; para proibir a manipulação das massas; para acabar com a discriminação das mulheres; para estabelecer novos direitos de caráter ambiental; para instaurar o princípio do desenvolvimento durável; para proibir a existência de paraísos fiscais; para incentivar uma economia solidária etc.
“Arrisca teus passos por caminhos que ninguém passou; arrisca tua cabeça pensando o que ninguém pensou”, dizia uma pichação de maio de 1968 nas paredes do teatro Odéon, em Paris. Se realmente quisermos fundar uma ética do futuro, a atual situação convida ao mesmo tipo de audácia.
Tradução: Jô Amado/Ignácio Ramonet é editor de Le Monde Diplomatique.
Fonte: Revista Caros Amigos/ano IV/n°44/novembro de 2000.
LE MONDE Diplomatique
Um cartaz enfeitou, em janeiro de 1998, as paredes de vários aeroportos europeus: numa paródia às imagens da Revolução Cultural chinesa, mostrava uma fila de pessoas, avançando à frente de uma manifestação, rostos radiosos, empunhando estandartes coloridos, agitados pelo vento, e gritando: “Capitalistas de todos os países, uni-vos!” Para a Forbes, revista dos bilionários norte-americanos, essa foi uma maneira debochada de comemorar 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels.
Foi também uma maneira de afirmar, sem medo de ser desmentidos (os cartazes não estavam rasgados nem pichado), duas coisas: o comunismo já não mete medo; e o capitalismo passou à ofensiva.
A NOVA ARROGÂNCIA DO CAPITAL
Num ano em que se comemoravam não apenas o aniversário desse célebre Manifesto, escrito por dois jovens (Marx tinha trinta anos e Engels, 28!), mas também o da revolução de 1848 (que impôs o sufrágio universal masculino e a abolição da escravatura) e o da revolta de maio de 1968, que reflexões poderia inspirar essa nova arrogância do capital?
Ela começou com a queda do muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética, num contexto de estupor político em que se manifestava o desejo de uma ilusão perdida. As súbitas revelações de todas as conseqüências, no Leste europeu, de décadas de estatização perturbaram os espíritos. Um sistema sem liberdade e sem economia de mercado surgiu em seu absurdo trágico, com seu corolário de injustiças. O pensamento socialista de certa forma sucumbiu, assim como o paradigma do progresso enquanto ideologia que pretende um planejamento absoluto do futuro.
A UTOPIA DO PENSAMENTO ÚNICO
À esquerda, aparecem quatro novas convicções que poderiam solapar a esperança de transformar radicalmente a sociedade: nenhum país pode se desenvolver seriamente sem uma economia de mercado; e estatização sistemática dos meios de produção e de comércio acarreta desperdício e penúria; a austeridade a serviço da igualdade não constitui, em si própria, um programa de governo; a liberdade de pensamento e expressão pressupõe, como condição necessária, uma certa liberdade econômica.
O fracasso do comunismo e a implosão do socialismo também arrastaram, por tabela, o desmantelamento ideológico da direita tradicional (que tinha por único suporte doutrinário o anticomunismo) e consagraram como único vencedor do conforto leste-oeste neoliberalismo. Com sua dinâmica freada desde o inicio do século, este vê desaparecerem seus principais adversários e passa a se exibir, em escala planetária, com energia decuplicada. Sonha impor sua concepção do mundo, a sua própria utopia, enquanto pensamento único, a toda a Terra.
A NEGAÇÃO DO ESTADO E DA CIDADANIA
Essa tarefa de conquista se chama globalização, e resulta da interdependência, cada vez maior, das economias de todos os países, através da liberdade absoluta de circulação dos capitais, da supressão das barreiras alfandegárias e de regulamentações, e pela intensificação do comércio e do livre mercado, incentivados pelo Banco Mundial (Bird), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Estabelece-se uma desconexão entre a economia financeira e a economia real. Enquanto as transações financeiras diárias representam 1,5 trilhão de dólares em escala mundial, apenas 1 por cento desse montante é dirigido à criação de novas riquezas. O resto é de natureza especulativa.
Esse impulso do neoliberalismo se faz acompanhar, mesmo nos países mais desenvolvidos, por uma significativa redução dos atores públicos, a começar pelos parlamentos, assim como por uma devastação do meio ambiente, por uma explosão de desigualdades e pelo retorno maciço à pobreza e ao desemprego. O que representa a negação do Estado moderno e cidadania.
COLOCANDO O PLANETA EM REDE
Também assistimos a uma desconexão radical entre, por um lado, a evolução das novas tecnologias e, por outro, a noção de progresso da sociedade. O avanço da biologia molecular, que data do inicio da década de 60, associado à potencia de matemática que agora permite a informática, mandou para o espaço a estabilidade geral do sistema técnico. Seu controle pelo poder público é cada vez mais difícil. Resultado: os dirigentes políticos se confessam incapazes de medir a ameaça que significa uma tal aceleração das tecnociências. Também aí eles passam à dependência de especialistas que dirigem, por caminhos obscuros, as decisões governamentais.
A revolução da informática explodiu a sociedade contemporânea, transtornou a circulação de mercadorias e proporcionou a expansão da economia eletrônica e a globalização. Esta ainda não abalou todos os países do mundo a ponto de os transformar numa única sociedade, mas tenta convertê-los num modelo único econômico, colocando planeta em rede. Cria um tipo de vinculo social-liberal totalmente constituído por redes, separando a humanidade em indivíduos isolados um do outro num universo hipertecnológico.
O MUNDO PARECE OPACO
Conseqüências: as desigualdades se aprofundam. Existem mais de 60 milhões de pobres nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo. Mais de 50 milhões de pobres na União Européia, principal potência comercial. Nos Estados Unidos, 1 por cento da população detém 39 por cento da riqueza do país. E, em escala planetária, a fortuna dos 358 indivíduos mais ricos, bilionários em dólar, é superior à renda anual dos 45 por centos dos mais pobres, ou seja, 2,6 bilhões de pessoas...
A lógica da competitividade foi elevada ao nível do imperativo natural da sociedade. Ela faz perder o sentido de “viver juntos”, do “bem comum”. Enquanto isso, a distribuição dos lucros da produtividade se faz em benefício do capital e em detrimento do trabalho, o custo da solidariedade é considerado insuportável e o edifício do Estado de bem-estar é implodido.
Diante da brutalidade e da rapidez de todas essas mudanças, perdem-se as referências, acumulam-se as incertezas, o mundo parece opaco, a história parece fugir de qualquer tipo de análise. Em meio à crise, os cidadãos procuram um sentido para o que Antonio Gramsci definia: “Quando morre o velho e o novo hesita em nascer”. Ou, como diria Aléxis de Tocqueville, quando “o passado deixa de iluminar o futuro e o espírito caminha nas trevas”.
O DESCRÉDITO DAS ELITES E INTELECTUAIS
Para inúmeras pessoas, a idéia ultraliberal de que o Ocidente está suficientemente amadurecido para viver em condições de liberdade absoluta também é tão utópica – assim como dogmática – como a ambição revolucionária da igualdade absoluta. Perguntam-se como é possível pensar o futuro. E expressam a necessidade de uma outra utopia, de uma nova racionalização do mundo. Esperam por um tipo de profecia política, uma reflexão sobre um projeto para o futuro, a promessa de uma sociedade reconciliada, em plena harmonia com si própria.
E haveria hoje um espaço, entre as ruínas da União Soviética e os destroços de nossas sociedades desestruturadas pela barbárie neoliberal, para uma nova utopia? A priori, isso parece pouco viável, pois se generalizou a desconfiança para com os grandes projetos políticos e porque, ao mesmo tempo, se assiste a uma grave crise de representação política, a um enorme descrédito das elites tecnocráticas e da intelectualidade mais famosa, assim como a uma profunda ruptura entre os grandes meios de comunicação e o seu público.
UM CONTRAPROJETO GLOBAL
Em qualquer tipo de eleição, aumenta o índice de abstenções, assim como o voto em branco e nulo. Na França, um em cada três jovens de menos de 25 anos não tem titulo eleitoral; o numero de filiados a partidos políticos não passa de 2 por cento dos eleitores e apenas 8 por cento dos assalariados se filiam a um sindicato. À esquerda, o Partido Socialista praticamente não tem mais quadros egressos das camadas populares; o Partido Comunista, além de perder sua identidade ideológica, praticamente perdeu a identidade sociológica.
E, no entanto, muitos cidadãos gostariam de colocar um grão de humanidade na engrenagem bárbara neoliberal; procuram um antecedente responsável, experimenta o desejo da ação coletiva. Gostariam de questionar dirigentes bem definidos, em carne e osso, a quem pudesse repassar suas críticas, suas preocupações, suas angustias e sua confusão, na medida em que o poder se tornou em grande parte abstrato, invisível, distante e impessoal. Ainda gostariam de acreditar que existem respostas na política, justamente quando a política tem cada vez maior dificuldade em dar respostas simples e claras aos problemas complexos da sociedade. E, no entanto, cada cidadão sente a necessidade urgente – como uma barreira contra a ressaca neoliberal – de um contraprojeto global, uma contra-ideologia, um edifício conceitual que se possa contrapor ao modelo atualmente dominante.
A IDEOLOGIA ANARCO-LIBERAL
Construir esse projeto não é fácil, pois o ponto de partida é quase tabula rasa que as utopias antecedentes, baseadas na idéia do progresso, sucumbiram quase sempre no autoritarismo, na opressão e na manipulação dos espíritos.
Uma vez mais se sente a necessidade de sonhadores que pensem e de pensadores que sonhem, para sair em busca de um projeto de sociedade – não um projeto amarrado e empacotado – que permite opinar, analisar e frear, através de uma nova ideologia, a ideologia anarco-liberal. Esta fabrica uma sociedade egoísta, priorizando a fragmentação, a divisão.
REINTRODUZIR A NOÇÃO DO COLETIVO
Torna-se indispensável, portanto, reintroduzir a noção do coletivo, pensando no futuro. E, hoje, essa ação coletiva passa por associações, como pelos partidos e sindicatos. Durante os últimos anos, aliás, assistiu-se, na França, a uma multiplicação dessas entidades, desde grupos de moradores numa luta especifica de seu bairro às associações contra o desemprego, passando pelas sucursais locais de ONGs internacionais, como Greenpeace, anistia Internacional, Médicos do Mundo ou Transparência.
Entre outras, os partidos têm duas características desabonadores: são genéricos (pretendem resolver todos os problemas da sociedade) e locais (seu perímetro de intervenção termina na fronteira do país). Já as associações têm, por seu lado, dois atributos simétricos e inversos aos dos partidos: são temáticas (voltadas para um único problema da sociedade: desemprego, habitação, meio ambiente etc.) e além fronteiras (sua área de intervenção se estende por todo o planeta).
UM VÍNCULO FUNDAMENTAL
Na década de 80, esses dois tipos de militância (global e de urgência, com um objetivo preciso) às vezes se estranharam. Porém, parece anunciar-se um movimento de convergência. Sua junção é indispensável. Constitui uma das equações a ser superadas para restaurar a política. Pois, se é o fato que as associações nascem de baixo, como testemunhas da riqueza da sociedade civil, e preenchem as deficiências do sindicalismo e dos partidos, também não passam, à vezes, de meros grupos de pressão, assim como lhes falta a legitimidade democrática da eleição para alcançar suas reivindicações. Numa hora ou em outra, será a vez do político. Por isso é fundamental que exista o vinculo entre associações e partidos.
Baseando-se numa concepção radical de democracia, essas associações continuam achando que é possível transformar o mundo.elas constituem, sem qualquer sombra de dúvida, o embrião da ação política na Europa. Muito provavelmente, como diziam Victor Hugo (“A utopia é a verdade de amanhã”) e Lamartine (“As utopias não passam de verdades prematuras”), seus militantes reaparecerão amanhã ou depois, em outros lugares, com outras palavras de ordem, engajados em outras lutas.
POR UMA ÉTICA DO FUTURO
Para reinstituir as nações Unidas no lugar que lhes cabe o direito internacional, uma ONU capaz de decidir, de agir e de impor um projeto de paz perpétuo; para adaptar os tribunais internacionais que julgarão crimes contra a humanidade, contra a democracia e contra o bem comum; para proibir a manipulação das massas; para acabar com a discriminação das mulheres; para estabelecer novos direitos de caráter ambiental; para instaurar o princípio do desenvolvimento durável; para proibir a existência de paraísos fiscais; para incentivar uma economia solidária etc.
“Arrisca teus passos por caminhos que ninguém passou; arrisca tua cabeça pensando o que ninguém pensou”, dizia uma pichação de maio de 1968 nas paredes do teatro Odéon, em Paris. Se realmente quisermos fundar uma ética do futuro, a atual situação convida ao mesmo tipo de audácia.
Tradução: Jô Amado/Ignácio Ramonet é editor de Le Monde Diplomatique.
Fonte: Revista Caros Amigos/ano IV/n°44/novembro de 2000.
Um comentário:
"Seja realista, exija o impossível."
A juventude já não é perigosa como outrora.
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