Frédéric Gros (foto) é professor da Universidade de Paris-XII, especialista em Michel Foucault, e editor de seus últimos cursos no Collège de France. Nessa entrevista explica o novo conceito de guerra, que define "Seja na guerra, seja no terror, um agente bem armado ataca pessoas desarmadas".
Primeiramente, o senhor poderia explicar o conceito de guerra nas culturas ocidentais? Por que esse conceito mudou depois da queda do Muro de Berlim? Qual é a nova concepção sobre a guerra?
Ainda mais precisamente do que o conceito de guerra na cultura ocidental, o qual me parece abranger coisas demais, eu poderia aqui simplesmente evocar o conceito de guerra para a "filosofia" ocidental moderna. Creio que ela contém uma das primeiras definições que existiram sobre a guerra. É definida, num livro de Alberico Gentilis datado do fim do século 16, como "conflito armado, público e justo". Retenho três dimensões dessa definição clássica. Por "conflito armado" é preciso entender um conflito violento, ou melhor, mortal. Mas essa dimensão, creio, é marcada durante toda a época moderna por uma estrutura de reciprocidade. Quer dizer que a guerra é construída como um conflito que opõe dois exércitos, fazendo os soldados se enfrentarem num campo de batalha, dos quais cada um ameaça a vida de cada outro na medida em que expõe a risco a própria vida. É esse elemento duplo de exposição à morte (portanto, de superação do medo de morrer) e de reciprocidade (portanto, de troca), que fascinou a filosofia moral. Um grande número de grandes valores éticos, como a coragem, o senso do sacrifício, a vontade de se superar, ou ainda a obediência, foram particularmente desenvolvidas no Ocidente a partir da experiência da guerra. Mas o progresso técnico transformou essas construções, quando a guerra se tornou uma matança moderna. A segunda dimensão não é ética, mas política: compreende a guerra como uma relação de violências regrada com o objetivo de reforçar, consolidar, afirmar um Estado. É a idéia da guerra como "conflito público". Por exemplo, Rousseau escreverá no seu Contrato Social que "a guerra é uma relação de Estado a Estado". Esse segundo sentido da guerra como ato de afirmação dum Estado soberano se constituiu no Ocidente quando o espaço político europeu se construía como a coexistência de uma pluralidade de Estados, cada um devendo afirmar sua consistência em relação a cada outro. Donde vem o que se chama o sistema clássico de segurança, em que o Estado se caracteriza, se legitima e se define a partir do monopólio da violência, do qual ele disporia, por um dever ilimitado de paz no interior (a ordem pública devendo ser assegurada a qualquer preço) e um direito ilimitado de guerra no exterior (para preservar sua integridade, ele pode a qualquer momento atacar outra unidade política). Enfim, quando Alberico Gentilis fala de "conflito justo" para definir a guerra, ele quer dizer com isso que a guerra é um conflito que porta uma reivindicação de direito. Essa idéia de guerra justa abrange, ademais, várias realidades : se pode pensar numa guerra justa no sentido em que a vitória definiria o campo do justo, como se a batalha fosse um processo. Mas se pode pensar também no modelo formado pelos teólogos de uma guerra justa como guerra de "justa causa: é a idéia de que a guerra não pode ser conduzida a não ser que se trate de reparar uma injustiça, punir um culpado. Enfim, se pode pensar na guerra justa como conflito em que os beligerantes (os Estados) desencadeiam violências armadas entre eles, ao mesmo tempo respeitando certas regras (a declaração de guerra, o respeito às tréguas e aos mensageiros, o bom tratamento dos prisioneiros etc.) Ora, esse conceito mudou, mas não forçosamente após a queda do Muro de Berlim. Creio que é uma série de rupturas que transformou profundamente a guerra. Pode-se pensar no progresso das técnicas de destruição, das metralhadoras à arma nuclear. Esse progresso foi de tal envergadura que o conflito entre grandes potências, que tinha escandido toda a história da Europa com notável regularidade, acabou significando seu suicídio recíproco. Mas se deve também, a longo prazo, considerar a importância política crescente das grandes democracias liberais, isto é, unidades políticas que privilegiam a discussão como meio de regulação dos desacordos e são receptivas a uma opinião pública, cada vez mais em relação a toda forma de sofrimento. O que a queda do Muro certamente provocou foi, por um breve momento, a esperança, a ilusão de que poderíamos viver num mundo sem guerra, pois o próprio símbolo da Guerra Fria, com tudo que envolvia de pesadelos ameaçadores, havia desabado.
Por que o senhor pensa que estamos no início da era dos "estados de violência"?
Com o conceito de "estados de violência, tento refletir sobre a forma dos conflitos pós-modernos. Me parece, com efeito, que novas lógicas se impõem, se formam linhas de força novas que são profundamente diferentes. As resumo sob três grandes princípios: um princípio, de início, de unilateralidade. Me parece que, ao contrário das guerras clássicas, os conflitos pós-modernos opõem mais freqüentemente alvos desarmados a meios de destruição. Seja que se trate de atos terroristas ou de intervenções ultratecnológicas, se assiste a violências largamente unilaterais. O segundo princípio é um princípio de asseguramento dos fluxos, apoiado por intervenções. O antigo sistema de guerra pressupunha uma série de distinções: entre o exterior e o interior, entre o inimigo e o criminoso etc. Os conflitos pós-modernos vão pressupor atores novos: mercenários, organizações não-governamentais, exércitos internacionais, máfias. É uma nova lógica que se forma. Enfim, falo de um princípio de midiatização para referir a importância da imagem nos conflitos contemporâneos: é por ela que se decide o sentido das novas violências. O que chamo de "estados de violência" é, portando, o que é preciso descrever na atualidade contemporânea.
O senhor poderia explicar o que é o conceito de segurança? Por que esse conceito redefine o agente político na sua dimensão de ser vivo?
O conceito de segurança é muito antigo, tem suas raízes muito distantes na espiritualidade dos antigos. Significava então o estado mental do sábio que não se deixa abalar por nada, mas se mantém sereno em todas as ocasiões. Como eu já disse, no sentido moderno ela se torna apanágio do Estado segundo um duplo sistema: a polícia no interior e o exército nas fronteiras. A segurança se refere então à integridade territorial do Estado. Hoje, esse conceito é problematizado de uma maneira muito nova num certo número de círculos internacionais que querem promover a idéia da segurança humana. Essa "segurança humana" se define como a proteção do individuo nas suas capacidades vitais de desenvolvimento, de afirmação. Leva em conta tudo que possa afetar, alterar, fragilizar o homem no próprio aspecto concreto de sua vida: as doenças, os atos terroristas, a pobreza, as mudanças climáticas. Essa consideração global me leva a falar de um conceito "biopolítico" da segurança.
O senhor poderia comentar a frase de Michel Foucault, "na história do conhecimento, a noção de natureza humana me pareceria ter desempenhado essencialmente o papel de um indicador epistemológico para designar certos tipos de discurso em relação ou em oposição à teologia, à biologia ou à história". O senhor pensa que existe uma natureza humana? Por quê?
Essa frase, creio, faz uma referência a uma problemática muito precisa que era a de Foucault no momento em que escrevia As Palavras e as Coisas. Remetida à idéia da "morte do homem", não como extinção da espécie, mas como dispositivo epistemológico. Ele explicava então que a "natureza humana" não era uma realidade imemorial, mas um princípio da organização dos discursos do saber a partir do século 19. Interrogar a verdade, isso envolvia colocar a questão: "Que é o homem". Ora, parecia a ele que essa questão estava já superada, e que a verdade da verdade era agora pesquisada do lado da linguagem. Tudo seria linguagem, comunicação, transmissão de códigos: a troca de bens, o casamento, a reprodução sexuada etc. Então, o homem, como núcleo central do saber, desaparece. O que significa para Foucault que a "natureza humana" remete a uma questão cultural precisa, mas não ter pertinência nem universal, nem trans-histórica.
Gabriela Laurentiis é estudante de ciências sociais.
Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/
Primeiramente, o senhor poderia explicar o conceito de guerra nas culturas ocidentais? Por que esse conceito mudou depois da queda do Muro de Berlim? Qual é a nova concepção sobre a guerra?
Ainda mais precisamente do que o conceito de guerra na cultura ocidental, o qual me parece abranger coisas demais, eu poderia aqui simplesmente evocar o conceito de guerra para a "filosofia" ocidental moderna. Creio que ela contém uma das primeiras definições que existiram sobre a guerra. É definida, num livro de Alberico Gentilis datado do fim do século 16, como "conflito armado, público e justo". Retenho três dimensões dessa definição clássica. Por "conflito armado" é preciso entender um conflito violento, ou melhor, mortal. Mas essa dimensão, creio, é marcada durante toda a época moderna por uma estrutura de reciprocidade. Quer dizer que a guerra é construída como um conflito que opõe dois exércitos, fazendo os soldados se enfrentarem num campo de batalha, dos quais cada um ameaça a vida de cada outro na medida em que expõe a risco a própria vida. É esse elemento duplo de exposição à morte (portanto, de superação do medo de morrer) e de reciprocidade (portanto, de troca), que fascinou a filosofia moral. Um grande número de grandes valores éticos, como a coragem, o senso do sacrifício, a vontade de se superar, ou ainda a obediência, foram particularmente desenvolvidas no Ocidente a partir da experiência da guerra. Mas o progresso técnico transformou essas construções, quando a guerra se tornou uma matança moderna. A segunda dimensão não é ética, mas política: compreende a guerra como uma relação de violências regrada com o objetivo de reforçar, consolidar, afirmar um Estado. É a idéia da guerra como "conflito público". Por exemplo, Rousseau escreverá no seu Contrato Social que "a guerra é uma relação de Estado a Estado". Esse segundo sentido da guerra como ato de afirmação dum Estado soberano se constituiu no Ocidente quando o espaço político europeu se construía como a coexistência de uma pluralidade de Estados, cada um devendo afirmar sua consistência em relação a cada outro. Donde vem o que se chama o sistema clássico de segurança, em que o Estado se caracteriza, se legitima e se define a partir do monopólio da violência, do qual ele disporia, por um dever ilimitado de paz no interior (a ordem pública devendo ser assegurada a qualquer preço) e um direito ilimitado de guerra no exterior (para preservar sua integridade, ele pode a qualquer momento atacar outra unidade política). Enfim, quando Alberico Gentilis fala de "conflito justo" para definir a guerra, ele quer dizer com isso que a guerra é um conflito que porta uma reivindicação de direito. Essa idéia de guerra justa abrange, ademais, várias realidades : se pode pensar numa guerra justa no sentido em que a vitória definiria o campo do justo, como se a batalha fosse um processo. Mas se pode pensar também no modelo formado pelos teólogos de uma guerra justa como guerra de "justa causa: é a idéia de que a guerra não pode ser conduzida a não ser que se trate de reparar uma injustiça, punir um culpado. Enfim, se pode pensar na guerra justa como conflito em que os beligerantes (os Estados) desencadeiam violências armadas entre eles, ao mesmo tempo respeitando certas regras (a declaração de guerra, o respeito às tréguas e aos mensageiros, o bom tratamento dos prisioneiros etc.) Ora, esse conceito mudou, mas não forçosamente após a queda do Muro de Berlim. Creio que é uma série de rupturas que transformou profundamente a guerra. Pode-se pensar no progresso das técnicas de destruição, das metralhadoras à arma nuclear. Esse progresso foi de tal envergadura que o conflito entre grandes potências, que tinha escandido toda a história da Europa com notável regularidade, acabou significando seu suicídio recíproco. Mas se deve também, a longo prazo, considerar a importância política crescente das grandes democracias liberais, isto é, unidades políticas que privilegiam a discussão como meio de regulação dos desacordos e são receptivas a uma opinião pública, cada vez mais em relação a toda forma de sofrimento. O que a queda do Muro certamente provocou foi, por um breve momento, a esperança, a ilusão de que poderíamos viver num mundo sem guerra, pois o próprio símbolo da Guerra Fria, com tudo que envolvia de pesadelos ameaçadores, havia desabado.
Por que o senhor pensa que estamos no início da era dos "estados de violência"?
Com o conceito de "estados de violência, tento refletir sobre a forma dos conflitos pós-modernos. Me parece, com efeito, que novas lógicas se impõem, se formam linhas de força novas que são profundamente diferentes. As resumo sob três grandes princípios: um princípio, de início, de unilateralidade. Me parece que, ao contrário das guerras clássicas, os conflitos pós-modernos opõem mais freqüentemente alvos desarmados a meios de destruição. Seja que se trate de atos terroristas ou de intervenções ultratecnológicas, se assiste a violências largamente unilaterais. O segundo princípio é um princípio de asseguramento dos fluxos, apoiado por intervenções. O antigo sistema de guerra pressupunha uma série de distinções: entre o exterior e o interior, entre o inimigo e o criminoso etc. Os conflitos pós-modernos vão pressupor atores novos: mercenários, organizações não-governamentais, exércitos internacionais, máfias. É uma nova lógica que se forma. Enfim, falo de um princípio de midiatização para referir a importância da imagem nos conflitos contemporâneos: é por ela que se decide o sentido das novas violências. O que chamo de "estados de violência" é, portando, o que é preciso descrever na atualidade contemporânea.
O senhor poderia explicar o que é o conceito de segurança? Por que esse conceito redefine o agente político na sua dimensão de ser vivo?
O conceito de segurança é muito antigo, tem suas raízes muito distantes na espiritualidade dos antigos. Significava então o estado mental do sábio que não se deixa abalar por nada, mas se mantém sereno em todas as ocasiões. Como eu já disse, no sentido moderno ela se torna apanágio do Estado segundo um duplo sistema: a polícia no interior e o exército nas fronteiras. A segurança se refere então à integridade territorial do Estado. Hoje, esse conceito é problematizado de uma maneira muito nova num certo número de círculos internacionais que querem promover a idéia da segurança humana. Essa "segurança humana" se define como a proteção do individuo nas suas capacidades vitais de desenvolvimento, de afirmação. Leva em conta tudo que possa afetar, alterar, fragilizar o homem no próprio aspecto concreto de sua vida: as doenças, os atos terroristas, a pobreza, as mudanças climáticas. Essa consideração global me leva a falar de um conceito "biopolítico" da segurança.
O senhor poderia comentar a frase de Michel Foucault, "na história do conhecimento, a noção de natureza humana me pareceria ter desempenhado essencialmente o papel de um indicador epistemológico para designar certos tipos de discurso em relação ou em oposição à teologia, à biologia ou à história". O senhor pensa que existe uma natureza humana? Por quê?
Essa frase, creio, faz uma referência a uma problemática muito precisa que era a de Foucault no momento em que escrevia As Palavras e as Coisas. Remetida à idéia da "morte do homem", não como extinção da espécie, mas como dispositivo epistemológico. Ele explicava então que a "natureza humana" não era uma realidade imemorial, mas um princípio da organização dos discursos do saber a partir do século 19. Interrogar a verdade, isso envolvia colocar a questão: "Que é o homem". Ora, parecia a ele que essa questão estava já superada, e que a verdade da verdade era agora pesquisada do lado da linguagem. Tudo seria linguagem, comunicação, transmissão de códigos: a troca de bens, o casamento, a reprodução sexuada etc. Então, o homem, como núcleo central do saber, desaparece. O que significa para Foucault que a "natureza humana" remete a uma questão cultural precisa, mas não ter pertinência nem universal, nem trans-histórica.
Gabriela Laurentiis é estudante de ciências sociais.
Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/
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