segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Corduras damascenicas.

Dizem que um dia o brasileiro foi um homem cordial. Eu acredito nisso porque, de certa forma, em minha memória ainda existe espaço para as imagens de um mundo marcado por cadeiras na calçada no fim da tarde e por uma dimensão afetiva no olhar e nas palavras dos meus conterrâneos. Mas o tempo, e sua mais cruel esposa, a história, trataram de, ao menos em minha cidade, sepultar, em meio a toneladas de concreto e a uma avalanche de consumo, os restos dessa cordialidade utópica que parece ter um dia marcado as tardes do Brasil. Hoje, a minha sensação, é que alguma coisa sem forma definida andou levando meus conterrâneos para o lado sombrio dessa imensa fantasia nietzscheana chamada Brasil.

Às vezes eu consigo encontrar a palavra exata para descrever o sentimento que eu tenho quando penso sobre essa perda tão significativa da cordialidade essencial que um dia parece ter agregado as partes fraturadas de meu povo, em um sonho dialético, onde os contrários podiam conviver. Mas, nessas horas, ainda bem que existe a arte para substituir minha voz e mostrar aquilo que eu não consigo expressar em palavras.


Essa semana entrei na galeria do NAC (na UFRN) e me deparei com a exposição de gravuras do artista plástico Cláudio Damasceno. A exposição intitulada "Cordura" faz alusão a uma bela e antiga palavra da língua portuguesa, que parece ter sido abandonada pelos brasileiros nos últimos anos. Cordura é a qualidade de quem é cordato, cordo (que vem tanto do português antigo quanto do espanhol cuerdo).


A cordura, palavra usada por Machado de Assis e que nos leva a um tempo de comunhão em um Brasil utópico e original, subitamente se transforma, na obra de Damasceno em uma "cor dura", uma irredutibilidade inexpugnável, representada nas três cores básicas (azul, amarelo e vermelho) usadas em cada uma das gravuras da exposição em seus três planos. Não há gradação nas cores de Cláudio Damasceno e se os personagens, insinuados pelas formas geométricas das gravuras, se confraternizam em uma deliciosa cordialidade, o cenário, o ambiente, o mundo que os circunda, com sua dureza e urbanidade não permite a comunhão, impedindo que as cores se unam e formem novas matizes. Há uma ameaça subentendida que paira na pintura de artistas como Hopper (pintor norte americano que retratou, hiper realisticamente o mesmo tipo de conflito que emerge da obra geométrica de Damasceno).


O cenário, com seu peso absoluto e objetivo, parece sempre tramar contra as figuras humanas, que buscam umas as outras em um carnaval de desencontro, e solidão. É como se o cenário de nosso mundo, tão cru e objetivo, com sua lógica de produção, com seu rigor que mata os sonhos de amor e de fraternidade dos homens, pudesse a qualquer momento engolir seus personagens. A dureza primitiva das coisas pode aparecer de modos diferentes.


Em Hopper, por exemplo, ela aparece na solidão das casas vazias em cima das colinas no fim de tarde, no silêncio que salta de uma bomba de gasolina abandonada em um posto de beira de estrada, na figura da lanterninha de cinema solitária, que não pode ou não quer assistir ao filme que se projeta na tela. Com suas cores básicas e suas linhas demarcadas, impedindo a gradação e construindo as formas geométricas que insinuam as figuras de suas gravuras, Damasceno consegue como Hopper, nos transportar a situações de nossa própria vida, como se em um flagrante fotográfico do cotidiano, pudéssemos visualizar nosso desejo de amor, nossa ansiedade de amizade, nossa busca de cordura, em meio a dureza das cores do mundo. Em uma Natal em transformação constante, em um mundo que se acelera e se concretiza velozmente, substituindo a paisagem natural pelo cimento e o concreto dos arranha-céus a pintura de Damasceno nos alerta, para o inquietante estado de nossa própria cordialidade, de nossa própria condição de sujeitos, humanos em meio a frieza das coisas. Para quem acredita que arte é decoração e que o papel do artista é enfeitar parede de clínica odontológica eu sugiro um passeio pelo universo pictográfico de Damasceno. Porque a arte também pode nos ensinar, ela joga na nossa alma a palavra que falta na nossa boca e dá forma a nosso estranho sentimento de orfandade, para que a vida e a dureza das coisas não possa, um dia, definitivamente nos apartar e nos destruir.

Autor: Pablo Capistrano, escritor e professor universitário.

2 comentários:

Anônimo disse...

João, posta sobre a revolução russa ;]

João Carlos Rocha disse...

Postarei essa semana!