sexta-feira, 22 de maio de 2009

Bélgica planejava colônia no Brasil

MARCO- Fábrica de derivados de carne que pertenceu a empresa belga, em imagem feita quando propriedade já era de norte-americanos.

BARÃO DO RIO BRANCO FOI QUEM DESMONTOU O PLANO

O oeste brasileiro, que já havia sido disputado por portugueses e espanhóis, despertou a cobiça dos belgas por sua localização estratégica - entre as bacias amazônica e platina, de onde seria possível partir para outras conquistas no continente no futuro. O governo brasileiro demorou a perceber a ameaça. Mas um homem atentou para o perigo: o Barão do Rio Branco, que assumiu o Ministério das Relações Exteriores em 1902.

Figura central da diplomacia brasileira, conhecido como o homem que consolidou as fronteiras do País, o Barão, sabe-se agora com as revelações do livro Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil, foi mais importante do que se imaginava. "Achava-se que seu maior feito tinha sido a resolução da questão do Acre, mas agora ficou provado que foi, na verdade, desmontar uma colônia belga no coração do País", ressalta o embaixador Jeronimo Moscardo, presidente da Fundação Alexandre Gusmão, editora da publicação, resultado da tese de doutorado de Domingos Sávio da Cunha Garcia.

Não chegou a haver comprometimento das relações Brasil-Bélgica, nem mesmo necessidade de intervenção diplomática, mas a embaixada lá monitorou os avanços dos belgas por aqui. "O Barão teve a exata compreensão dos atores que estavam em jogo, sabia que os interesses eram fortes. Ao desatar a questão do Acre, por tabela desmontou a tática dos belgas", diz a pesquisadora.

Os pesquisadores que estudam a formação do território brasileiro costumam se dedicar apenas ao período colonial, quando os portugueses trataram de expandir seu domínio para o distante oeste. E, também, ao que se estende da Independência, em 1822, a 1850, fase em que a Coroa se ocupou de manter o que já havia conquistado, sufocando revoltas separatistas nas províncias. Nem mesmo os historiadores sabem, mas bem depois disso, no fim do século 19, um pequeno país europeu tentou estabelecer aqui uma colônia para chamar de sua.

Trata-se da Bélgica, reino que já possuía um território na África, o Congo Belga, de propriedade pessoal do rei Leopoldo II (atual República Democrática do Congo). O período em questão é conhecido como a "era dos impérios". Caracteriza-se por uma nova etapa da expansão colonialista dos países desenvolvidos, em busca de matérias-primas de baixo custo e mercados para seus produtos industrializados.

As pretensões belgas no Brasil se localizaram no extremo oeste brasileiro, e tiveram como alvo parte da região onde ficam Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Ou seja: bem distante dos olhos do governo federal de então. Tudo começou em 1895, quando a Compagnie des Produits Cibils, sediada na Antuérpia, adquiriu uma fábrica construída por um argentino para produzir derivados de carne, na região de Descalvados (município de Cáceres, MT), fronteira com a Bolívia.

Foi o primeiro empreendimento no local e ponto de partida para uma série de iniciativas que tinham como objetivo final repetir aqui a experiência africana. É o que acredita Domingos Sávio da Cunha Garcia, professor do Departamento de História da Universidade de Mato Grosso e autor do livro Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil, que está sendo lançado pela Fundação Alexandre Gusmão, ligada ao Itamaraty.

"Três anos depois da compra da fábrica, a operação muda de caráter, e começa a expansão para o oeste", explica. "Só em Descalvados, eles compraram mais de 1 milhão de hectares; mais ao sul, 500 mil hectares; ao norte, as concessões de área de extração de borracha chegaram a dois terços do que hoje é o Estado de Rondônia. No total, foram entre 5 e 8 milhões de hectares (o que equivale a 80 mil quilômetros quadrados)."

Garcia começou a se dedicar ao assunto nos anos 90. A pesquisa ganhou gás quando ele conheceu, num congresso, o pesquisador belga Eddy Stols, da Universidade de Louvain, especialista em Brasil que também se debruçara sobre o tema. Depois de garimpar documentos, livros, contratos, jornais e relatórios no Arquivo Público de Mato Grosso e no Arquivo histórico do Itamaraty, Garcia chegou à conclusão de que o interesse dos belgas ia muito além da exploração da borracha, da pecuária e da rentável atividade da moderna fábrica de Descalvados. A indústria, hoje em ruínas, produzia extrato de carne bovina e derivados exportados para o mercado europeu.

Prova disso foi a despropositada solicitação, feita em 1897, de instalação de um consulado da Bélgica em Descalvados (havia representações no Rio e em São Paulo) - uma forma de resguardar seus interesses por lá. O pedido foi negado pelo Brasil, mas um vice-consulado acabou sendo aberto. Enquanto isso, toda a área era devidamente guardada por militares belgas que atuaram no Congo.

ACRE
Outra comprovação das intenções colonialistas é o súbito desinteresse pela região quando se resolveu a disputa pelo território do Acre, contíguo a Rondônia, entre brasileiros e bolivianos. As terras pertenciam originalmente à Bolívia, mas eram ocupadas por seringueiros do Brasil. Estavam arrendadas a grupos norte-americanos, organizados num sindicato.

Mas, mediante pagamento de indenização e graças ao recuo dos EUA quanto à possível criação de uma colônia sua no lugar, o que chegou a ser oferecido pelo governo boliviano, acabaram sendo anexadas ao território brasileiro. Àquela altura, os americanos decidiam que a América Latina seria, sim, sua área de influência exclusiva, mas não com aquisição territorial.

Tão logo a questão acreana se resolveu, em 1903, os belgas começaram a se desmobilizar e deixar o oeste brasileiro. Haviam percebido que levar seu plano adiante seria muito mais difícil do que pensavam. Isso aconteceu já em 1904, a despeito dos lucros com as exportações dos produtos da fábrica. "Na questão do Acre, foi como se os EUA dissessem: ?Aqui ninguém tasca?. Os belgas rapidamente recuaram", diz o professor.

O tema não pautou as pesquisas dos historiadores brasileiros talvez por conta da ideia cristalizada de que a integridade territorial não correu riscos na segunda metade do século 19 e nos primeiros anos do século seguinte. Como nenhuma ameaça se concretizou e não houve perdas de terras, é como se nada tivesse acontecido. Mas o livro lembra que não foram só os belgas que sonharam ser donos de um pedacinho do Brasil - vide a invasão inglesa da Ilha da Trindade (1895-1896), no litoral do Sudeste, e a disputa com a França pelo Amapá (que só foi resolvida no século 20).

Fonte: O Estado de São Paulo
Crédito: Roberta Pennafort


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