quarta-feira, 9 de março de 2011

Acordo mina programa de combate a trabalho escravo.

E o governo assinou o acordão com a Cosan.

Adiantei, no dia 15 de fevereiro, que o governo federal estava fechando um acordo com o maior produtor de açúcar e álcool do mundo para que ele ficasse fora da “lista suja” do trabalho escravo em definitivo. Pois bem, hoje uma reportagem de João Carlos Magalhães, no jornal Folha de São Paulo, traz a negociação. O título acima foi tirado de lá.

A relação traz o nome das pessoas físicas e jurídicas flagradas com esse tipo de mão-de-obra por equipes de fiscalização, que ficam expostos por dois anos – período durante o qual devem provar que regularizaram a situação e não incorreram novamentre no crime. Durante esse tempo, não conseguem financiamentos públicos e sofrem boicotes de empresas públicas e privadas.

A Advocacia Geral da União, que tem sido célere em defender a “lista suja” diante de ações judiciais que tentam minar um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo (porque permite atacar o bolso, a parte mais sensível do corpo humano), acabou beneficiando a empresa em detrimento ao que vem fazendo desde então.

A pergunta é: por que? E a pedido de quem? Vamos analisar o caso.

A Cosan ganhou manchetes dentro e fora do país quando foi incluída no cadastro de empregadores flagrados com mão-de-obra escrava, conhecido como a “lista suja”, em 31 de dezembro de 2009 por conta da libertação de 42 pessoas em sua usina em Igarapava (SP). Até obter a liminar na Justiça do Trabalho,e depois uma decisão favorável em primeira instância, retirando-a da relação, viu o BNDES, o Wal-Mart, entre outras empresas, suspenderem o relacionamento com ela, além de quedas significativas nas bolsas de valores de São Paulo e de Nova Iorque. Empresas inseridas na “lista suja” permanecem na relação durante dois anos.

Um acordo semelhante começou a ser costurado no ano passado, fato que beneficiaria um grande produtor de algodão no Estado do Mato Grosso. Contudo, os ministros do Trabalho e Emprego e da Secretaria de Direitos Humanos, contrários a esse tipo de solução na época, fizeram gestões junto ao advogado geral para que o processo fosse repensado.Ao que tudo indica, as negociações com o grupo matogrossensse cessaram, mas a AGU as manteve com a Cosan desde então. É a primeira vez que essa tipo de acordo é feito.

Na Folha de São Paulo, há um trecho extremamente elucidativo, quando o advogado geral da União, ministro Luís Inácio Adams, afirma que o acordão foi para resolver uma situação “excepcional”: Segundo Adams, a análise da autuação sofrida pela Cosan em 2007 mostra “fatores que indicam a não intencionalidade” em submeter trabalhadores a tratamento análogo à escravidão.

Não intencionalidade? O advogado está precisando conhecer melhor a jurisprudência sobre o assunto. Trabalho escravo não é fruto de uma patologia sádica de fazendeiros malvados e sim de uma consequência de um processo de corte de custos que transforma seres humanos em instrumentos descartáveis de trabalho na busca pelo lucro fácil. É a economia! “Vou ser mal, vou usar escravos” não é uma frase utilizada. “Vamos cortar custos, custe o que custar”, por outro lado, é largamente ouvida nessas situações. Desde 1995, foram cerca de 40 mil pessoas libertadas em todo o país. Todos os envolvidos afirmaram não saber que usavam escravos, mas também não se preocuparam em estar arrancando o couro dos trabalhadores. Ou seja, péssima justificativa a da AGU.

Segundo a Folha, Adams também disse que a responsabilidade pelas condições encontradas era de uma empresa terceirizada. Outra justificativa sofrível, que confirma que o caso não tem nada de incomum, pois esse é o padrão nas libertações de escravos no país, uma vez que a terceirização ilegal é porta de entrada para o trabalho escravo. Juízes do Trabalho consultados por este blog apontam que o uso de terceirizadas no caso de trabalho escravo é uma artimanha das grandes empresas de se verem livre da responsabilidade legal por seus empregados.

É difícil acreditar que a ordem tenha saído da própria AGU, ou seja, do advogado e não do cliente. Por trás de tudo está o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, articulado pelo governo federal e lançado em junho de 2009. É uma das meninas dos olhos do Palácio do Planalto, que tenta – através dele – garantir melhorias das condições no canaviais e, consequentemente, a imagem de um combustível socialmente limpo dentro e fora do país. Até agora, o Compromisso está no aguardo de um processo vigoroso de monitoramento independente para se mostrar confiável. Enquanto isso, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, não é possível dizer que as condições de trabalho nos canaviais melhoraram nos últimos dois anos.

A Cosan tem todo o direito de entrar na Justiça caso se sinta prejudicada. Cabe à Justiça decidir e ao governo defender suas ações. Quando o governo deixa de exercer o papel que estava cumprindo, fica-se a dúvida. Por que?

Como ter a maior empresa de açúcar e álcool do mundo na “lista suja” e como signatária de um Compromisso avalizado pelo Planalto ao mesmo tempo? Pega mal, né?

Assim nascem os acordões. E assim os instrumentos de proteção da população viram vinagre.



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